segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A primeira coisa linda

"Sala sem mobília, goteira na vasilha, problema na família, quem não tem?", já dizia a primorosa letra da "Ciranda da bailarina" de Chico Buarque e Edu Lobo. Bem, problemas de família foi o que não faltou nos filmes da 4ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. "A primeira coisa linda" é mais um exemplo dessa tendência. Dirigido pelo italiano Paolo Virzi, o filme, que traz Setefania Sandreli no papel da Mama Ana envelhecida, é mais um embroglio familiar que permite uma leitura psicanalítica. Apaixonado pela mãe como todo menino, o pequeno Bruno sofre quando percebe que fora o papai ele tinha muitos outros rivais. Além de linda, a mãe do pequeno Bruno e da garotinha Valéria, também era alegre, ingênua e carente. Uma presa fácil para homens aproveitadores. Por outro lado, essas características a jogavam na boca do povo. E como as mulheres feias, gordas e invejosas adoram colocar no pelourinho as moças mais atraentes que elas! A começar pela irmã de Ana, Leda, apaixonada pelo cunhado, que se une a ele para cuidar das crianças, insinuando maldosamente que Ana não era boa nisso. Evidentemente esse conflito provoca um nó nas cabecinhas dos dois irmãos que amavam tanto aquela mãe e eram tão amados por ela, de maneira anárquica, atabalhoada, mas transbordante de carinho. Vamos encontrar um Bruno adulto com dificuldades de relacionamento e problemas com drogas. Ao ser informado pela irmã de que Ana estava à beira da morte, a procura no hospital e revive, na sala de espera, os flashes mais marcantes da infância. Se ainda havia alguma mágoa, as circunstâncias o levam a perdoar, ou mesmo a jogá-la no fundo do inconsciente. Até porque não há tempo para um trabalho psicanalítico. Ana está prestes a morrer, com a mesma alegria e despreocupação que marcaram toda sua trajetória na terra. E Bruno decide fazer-lhe todas as vontades. Incrível como as família, diante da morte iminente, tendem a mimar seus entes queridos. Principalmente se foram mimados por eles quando crianças. Entre as vontades de Ana havia a de se casar com um namorado tardio e a de rever o filho que tivera fora do casamento e fora criado pelo pai. Cristiano aparece na festa do casamento, que a certa altura se transforma no velório da bela mamma italiana.

domingo, 21 de novembro de 2010

Quando partimos


Depois de ganhar o troféu "Bandeira Paulista" de melhor filme na Mostra de São Paulo, "Die Fremde", da austríaca Feo Aladag, está sendo indicado ao Oscar de filme estrangeiro do próximo ano. Com roteiro da própria diretora, que também é atriz, "Quando partimos" conta a história trágica, como tantas, da muçulmana Umay, casada com um turco de Istambul. Depois de realizar um aborto contra a vontade, a moça abandona o marido opressor, que batia nela e no filho, e volta à casa da família em Berlin, com o pequeno Cem a tiracolo. Para sua decepção, os pais e irmãos, também muçulmanos, não aceitam a separação e passam a vê-la como uma ameaça à boa reputação do clã. Chegam a concordar com a idéia de que Cem devia ser entregue ao pai violento. Também se apavoram diante do perigo que uma irmã separada representa para o casamento da filha caçula. Desconsolada com a falta de apoio da mãe e com a prepotência do pai e dos irmãos, Umay abandona a casa paterna atrás de um emprego e de um lugar para morar. A submissão da mulher na sociedade muçulmana não é novidade no cinema. Também vemos, a toda hora na mídia, casos de assassinatos e outras insanidades cometidas em nome de Alá. O que torna "Quando partimos" diferente dessas histórias reais ou fictícias é o foco nos sentimentos da protagonista. Alguns críticos se incomodaram com o fato de a moça não tomar nenhuma atitude drástica para romper com essa família tão pouco acolhedora. Aí é que entram os afetos de que trata a Psicanálise. Umay amava aquela família. Não conseguia aceitar por que o pai dava mais importância ao "que os outros iriam pensar" do que às suas necessidades. Tampouco entendia como a mãe, de quem esperava amor incondicional, se afastara dela na hora em que ela mais precisara. Mais do que um filme sobre a repressão muçulmana, "Quando partimos" é um mergulho no drama da rejeição. Quando a amiga e patroa diz a Umay que, dali pra frente, sua família seria só ela e o filho, não deve ter sido fácil para a moça receber aquela verdade. Assim como não é para nenhuma mulher que passa a ser rotulada de "puta", por ter desafiado as regras paternas, em famílias católicas, evangélicas ou judias. É nessa hora que a Psicanálise pode ajudar pais e filhos a digerirem essas verdades. Mas se olhar no espelho exige tanta ou mais coragem do que desafiar regras e quebrar tabus.

sábado, 20 de novembro de 2010

Dois irmãos

O cinema argentino retrata como ninguém os relacionamentos familiares. Se isso tem a ver com a força da Psicanálise naquele País, não sei. Mas o interesse daquele povo pelas teorias freudianas pode muito bem estar contribuindo para enriquecer os filmes daquele País com conteúdos psicanalíticos.  “Dois Irmãos”, o mais recente de Daniel Burmann, não deixa por menos. Depois de explorar relações entre pais e filhos e entre casais em sua filmografia anterior, dessa vez, o cineasta esmiúça o tumultuado relacionamento entre os irmãos Suzana e Marcos, solteirões na faixa dos 60, que acabam de perder a mãe e têm diante de si a tarefa de decidir o que fazer com a herança.  Suzana é quem detém o poder na família. Corretora de imóveis, faz e acontece, dominando o irmão completamente. Percebemos, no decorrer do filme, que o sensível Marcos era mais ligado à mãe, de quem cuidou até morrer, numa aparente fixação edipiana. Suzana, por sua vez, deixa escapar nos diálogos  a ligação especial com o pai, que pode ter evoluído para uma identificação, levando-a a assumir o poder fálico da família. Baseado num romance de Sergio Dubcovsky, o filme não toma partido nem da histriônica Suzana, nem do silencioso Marcos. Mas aos poucos percebemos o quanto havia de castrador no poder de Suzana, e o quanto o Marcos consegue crescer quando se afasta dela. Refugiado na propriedade que ela adquire para os dois no Uruguai, o solteirão abraça sua profissão de joalheiro e, de quebra, ainda descobre sua veia artística, integrando-se a uma trupe teatral. A peça que está sendo ensaiada é nada mais nada menos que Édipo Rei, clara referência ao complexo que se tornaria um dos alicerces da Psicanálise. Alguns críticos viram na amizade de Marcos com o diretor da peça um viés homossexual. Pode ser. Mas diria que a figura do diretor representa para Marcos, mais um Pai merecedor da sua admiração com quem ele pode se identificar, matando o pai castrador, a quem ele se submetera a vida inteira. Um pai que, por acaso veste saias, e atende pelo nome de Suzana. Por nunca ter tido o afeto da mãe, a moça morre de inveja do irmão e se incomoda muito com o sucesso dele. Coisa de irmãos. Num mundo onde todos carregamos  os mesmos arquétipos desde Adão e Eva, não duvido de que haja um Caim e um Abel escondidos no fundo dos nossos inconscientes.  

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Minhas mães e meu pai

Lisa Cholodenko é o nome da diretora dessa comédia sobre uma família constituída por um casal de lésbicas com um filho cada  uma. O pai é o mesmo: um desconhecido que havia doado o esperma e permanece incógnito, até que o garoto Laser, aos 15 anos decide procurá-lo, envolvendo na empreitada a irmã Joni. É aí que começam os problemas. Sob o ponto de vista psicanalítico, Nic é o poder fálico do casal: cabelos curtinhos e tipo masculinizado, é médica e quem traz dinheiro para casa. Jules, mais feminina, cabelos longos, como muitas esposas héteros, ainda está buscando se encontrar profissionalmente. Assim como aquelas, também joga na cara da marida o fato de ter se dedicado à vida toda às crianças enquanto a outra se realizava. Segundo Freud, mulheres que gostam de mulheres têm uma sexualidade infantil, fixada na fase fálica. Isso não as impede de serem felizes. Seus filhos, aparentemente também não têm problemas com isso, aceitando os limites que a mãe masculina Nic impõe, enquanto a mãe feminina exerce, para ambos, o papel da acolhedora. Quando a figura paterna é introduzida na trama, dá um certo nó na cabeça dos jovens. A menina, imediatamente transforma-o em seu objeto inconsciente de desejo, a ponto de brigar com a amiga que dá em cima dele e se revoltar quando Jules se envolve com ele. Ao mesmo tempo, põe-se a questionar as regras impostas pelas mães em relação a “andar de moto”, aceitando a carona daquela figura que, na teoria freudiana, exerce o papel de estabelecer o que é certo e errado. Quanto ao garoto, mais ligado em esportes do que em estudos, a identificação com o pai não é imediata. Mas, aos poucos, Paul também passa a  lhe transmitir valores, abrindo-lhe os olhos, por exemplo, para a amizade com um moleque problemático. Quando Paul e Jules se envolvem, durante o projeto de paisagismo que ela desenvolve para o restaurante dele, confesso que torci para dar certo. Surpreendentemente, os filhos não. Para não magoar a mãe Nic, insistiram na manutenção do casamento lésbico, por mais constrangedor que fosse para elas. Será que na vida real os jovens estão tão modernos assim? Duvido. Por mais que amassem as mamães, obviamente prefeririam que seus amigos, futuros cônjuges, sogros, ou patrões soubessem que eles pertenciam a uma família normal. Ainda mais com uma mãe charmosa como a Julianne Moore e um pai gatíssimo como Mark Ruffalo!

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Submarino

A Mostra Internacional de Cinema nos trouxe, esse ano, “Submarino”, o último filme de Thomas Vinterberg, o dinamarquês que fundou o “Dogma 95” junto com Lars Von Triers. Pais abusivos ou ausentes costumam ser um bom tema para a Psicanálise. O filme de Vinterberg não deixa por menos. Baseado no romance de Jonas T. Bengstsson,  retrata a dor e a fragilidade de dois irmãos. O filme abre com cenas de um lindo bebê sendo batizado por dois pré-adolescentes. Na seqüência,  descobrimos que a mãe das três crianças é uma alcóolatra inveterada, permanentemente atrás de sua garrafa de Martini. Não pra menos, os meninos, já nessa tenra idade também estão viciados em bebida e cigarros, numa provável fixação na fase oral. Numa noites, com a mãe ausente, como sempre, os dois põem o irmãozinho para dormir e promovem uma festa particular, regada a bebida e música alta. A música alta é a maneira que eles encontram de abafar o incômodo choro do bebê. O Day after da festa apresenta uma tragédia que vai marcar a vida daqueles meninos para sempre. Ao perceber que o bebê está morto, os dois assumem a culpa, sem entender que a pulsão de vida naquela criança já devia estar comprometida pela falta do olhar materno. Com isso, se tornam adultos completamente desajustados. Seguindo o exemplo da mãe, Nick torna-se um alcoólatra com dificuldades nas relações amorosas. Ivan, por sua vez, se mete com drogas pesadas e acaba assumindo o filho Martin, mesmo nome do bebê falecido, quando a esposa morre de overdose. Claro que a dependência química o impede de exercer o papel de pai, no caso de pai e mãe, colocando-o sob a mira da Assistência Social. Quando os irmãos se reencontram no funeral da mãe, Nick tenta ajudar o sobrinho, abrindo mão de sua parte na herança. Mas o dinheiro só vai servir para afundar mais o pobre Ivan. Iludido com a vida fácil de traficante/usuário, ele queima tudo o que havia recebido e acaba preso. É quando se dá o segundo encontro entre os irmãos. Nick ,que havia ido para trás das grades para acobertar um amigo, é informado do suicídio de Ivan. Mais uma vez, se vê diante do sobrinho num funeral. O que acontece daí para frente não sabemos. Mas fica no ar a esperança de que, assumindo o pequeno Martin, Nick conseguirá expiar sua culpa da adolescência. Tomara!

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A era do rádio

Os filmes de Woody Allen são um prato cheio para estudantes de psicanálise. Freqüentador assíduo de divãs, o diretor, quando não retrata os seguidores de Freud em seus filmes, assume o papel deles, como em “A era do Rádio”, empreendendo uma viagem pelo inconsciente dos personagens, no caso ele mesmo criança. Um professor do IBCP disse, certa vez, que o psicanalista trata da criança que existe no paciente. Em a “Era do Rádio”, Allen desconstrói o inconsciente do Joe adulto (o narrador) através dos olhos do garoto. O filme é um delicioso mergulho no universo de uma típica família judáica do Brooklin, durante a II Guerra. Mais exatamente a própria família de Allen . Filho de um taxista, Allan Stewart Königsberg, leva para o filme a falta de admiração pela profissão paterna, num mundo onde os ricos, chiques e glamurosos do show business é que eram valorizadas. Esses conceitos deviam refletir o desejo do menino Allan, de ser artista quando crescesse. E não se pode dizer que não tenha sido plenamente realizado. Mas voltando ao pai de Joe, há um momento chave no filme, quando ele aplica umas palmadas no bumbum do moleque, por ter usado a dentadura da vovó como disco de hockey. Em meio à surra de cinta, clara demonstração do papel paterno de estabelecer limites para o filho, o rádio, único canal de comunicação daquela família com o mundo, noticia que uma menina, aproximadamente da idade de Joe, havia desaparecido de casa e, dias depois, sido encontrada num poço. O resgate dessa criança é acompanhado por toda Nova York, com a mesma consternação com que há 2 anos o Brasil se envolveu no caso Isabela Nardoni. Quando os ouvintes, entre os quais a família de Joe, recebem a notícia de que a menina havia morrido, o pai de Joe agarra-o no colo com tanta tristeza que fica clara a sua culpa por todas as surras e maus-tratos que inflingira no menino ao longo da vida. A cena é tocante. Nos lembra de como nossos pais se culparam, quando não fomos nós que os culpamos, de atos praticados com a melhor intenção de nos educar. Tá certo que de boas intenções o inferno está cheio. Mas pra que transformar a vida na terra num inferno, perpetuando essas culpas ad eternum?

sábado, 6 de novembro de 2010

Esplendor na Relva


Baseado num poema de Woodworth sobre a nostalgia da infância, "Splendor in the Grass", "Clamor do Sexo" aqui no Brasil, é o primeiro de uma série de filmes de Elia Kazam que decidi assistir depois de ter me apaixonado por "Carta para Elia", o documentário em que Scorcese homenageia o cineasta grego. Retrato da América dos anos 30, o filme que consagrou e juntou na vida real Natalie Wood e Warren Beatty, tem os dois pés na Psicanálise. Deanie Loomies, a garota certinha do Kansas, é apaixonada pelo charmoso Bud Stamper. E ele por ela. Mas a moral da época e a marcação cerrada da família, impedem a moça de dar vazão à sua libido. Numa associação bem fálica, mamãe Loomies recomenda a Deannie antes de dormir : Não deixe o pernilongo te picar ! O pernilongo, no caso o belo herdeiro da família mais rica do pedaço, não se aguenta mais de tesão! E pede um tempo. Até porque concorda em preservar a inocência da namorada. Não quer que ela vire uma garota fácil e mal falada como sua irmã Ginny, além de tudo alcólatra. A repressão sexual da moça, provavelmente influenciada pela divulgação dos conceitos freudianos, na época, a leva uma um verdadeiro ataque histérico quando percebe estar perdendo seu grande amor por não ceder aos próprios desejos. Mas esses não são os únicos ingredientes psicanalíticos do filme. A relação de Bud com o pai, que o obriga a ir para a universidade, quando tudo o que deseja é cuidar da fazenda da família, tem elementos edipianos: o rapaz só concretiza seu sonho depois da morte do velho. Pra completar, numa época em que psicanalise e psiquiatria andavam de mãos dadas, é na clínica do Dr. Judd que nossa Deanie experimenta o divã. Se o analista consegue curá-la, não ficamos sabendo. Mas depois da clínica, a moça reúne forças pra encarar aquele passado que aos olhos da sua mãe parecia tão ameaçador. Revendo Bud no papel de criador de porcos e marido da filha da pizzaiola, com um filho no colo e outro na barriga da patroa, ela se toca do quanto havia de fantasia naquele amor, e do quanto a vidinha pacata na fazenda não tinha nada a ver com ela.